quinta-feira, 17 de outubro de 2013

o triunfo da antecipação

(sobre os pezo von ellrichshausen)
 
I
Entre a fase cubista e a produção das primeiras pinturas suprematistas, Kazemir Malevich fez uma série de pinturas de influência Dada e Surrealista, que constituem uma das fases menos conhecidas da sua obra. São representativos desta fase trabalhos como Vaca e Violino (1912/3), Um Inglês em Moscovo (1914) ou Composição com Mona Lisa (1915/6). Nestas pinturas, coexistem uma série de elementos de naturezas díspares, dispostos lado a lado e desencontrados, como se cada elemento fosse um retalho de uma realidade, costurado a outros retalhos, de forma a que o conjunto seja uma realidade específica cuja obtenção não se conseguiria de outra forma que não por esta conjugação de fragmentos. Muitos dos fragmentos formam eixos que ora são seguidos, ora são ignorados, o que ajuda a manter a especificidade de cada um.

A razão pela qual estas pinturas resultam tão impressionantes e tão manifestamente criativas é que, fazendo uso das melhores lições compositivas do Cubismo, da ironia do Dadaísmo e da torção lógica do Surrealismo, Malevich consegue conceptualmente aquilo que a sua fase suprematista explorará ao extremo: que na tela não se proceda a uma deplorável imitação da vida [NÉRET: 2003,42] como o próprio pintor se referia à pintura directamente figurativa, mas que, pelo contrário, a tela fosse espaço de criação, de início, de uma realidade psicológica e ideológica que ali se revela, em vez de ali ser reproduzida. Na rela dá-se o passo mais arrojado que as leis da física impedem que se dê na vida, por assim dizer. Realidades distintas podem, assim, sofrer um exercício recombinatório, deslocando-se e descobrindo possíveis relações entre si e encontrando uma nova realidade no conjunto.


II
Há uma imagem comum a quase todas as obras, particularmente as de habitação, dos Pezo Von Ellrichshausen. São casas com volumes regulares de aspecto maciço, rasgados por janelas quadradas de tamanhos diferentes e que se recusam a formar entre si uma quadrícula directa. Dentro desta descrição básica, os Pezo Von Ellrichshausen operam uma série de variações no aspecto exterior dos seus edifícios. Mas tratando-se de um estilo verdadeiramente definido e identificável, a verdade é que resulta e, repetindo-se, tem sempre esta imagem de força renovada pois não há, no fundo, repetição nesta repetição. Porque o aspecto exterior das casas dos Pezo Von Ellrichshausen rege-se pela mesma lógica das pinturas pré-Suprematistas de Malevich: sobre o aspecto pesado das paredes exteriores estão abertas as janelas, que despem fragmentos dos interiores para os alçados. Realidades diferentes _fragmentos de compartimentos _surgem então nos alçados, criando uma nova realidade. Na mesma superfície se juntam pedaços de realidades que, no interior, se encontram separadas.


Através, portanto, de uma observação mais estritamente estética da arquitectura de Maurizio Pezo e Sofía Von Ellrichshausen, é-nos possível aferir uma das suas características conceptualmente mais originais e mais fortes: há uma série de metamorfoses que decorrem, atrás da aparência simples e linear, pelo comportamento das partes entre si no todo. Esta é uma arquitectura que vive da reação e da comunicação, da manipulação espacial e visual, da interpretação e da reinterpretação contínuas.

 
III
Juhani Pallasma aponta que o trabalho dos Pezo Von Ellrichshausen aspires to introduce elements of mystery, the unexpected and the unknown into contemporary architectural imagery, wich has become too transparente, predictable and instrumental. Buildings of the postmodern era have lost their opacity, mystery and shadow [PALLASMA: 2012,6]. Não será ao acaso que o autor de ''The Eye of the Skin'' aponta o pós-moderno como fase cultural problemática. Os arquitectos do modernismo, levados pela febre de fazer algo de profundamente novo podem ter encontrado resposta para muitos dos problemas da arquitectura no seu tempo, mas tiveram também uma relação conturbada e até contraproducente com a História, enquanto consciência do passado, e estamos ainda a tentar recompor-nos dos danos causados pela histeria modernista, que veio desculpabilizar ignorâncias e imprecisões na prática da arquitectura. A colocação da dúvida sobre se a arquitectura é ou não é uma arte é um desses problemas, e vem um pouco daí a frieza que Pallasma refere. Demitida da responsabilidade artística, a arquitectura predispôs-se a abdicar da sua dimensão emotiva, pessoal e poética.
Que a dupla de Maurizio Pezo e Sofía Von Ellrichshausen tenha conquistado tão grande projecção poderá ser um sintoma optimista de que talvez o mal-entendido comece a resolver-se. Isto porque, apesar de um processo criativo extremamente racionalizado, o trabalho dos Pezo Von Ellrichshausen tem como fim edificações largamente emotivas que recuperam séculos e séculos em que a construção de edifícios era materializar [a] cosmogony, mental world, social order [PALLASMA: 2012,4] ou seja, recupera o sentido pleno da arte, o de ser algo no mundo, que revela esse mundo e revela igualmente artista e observador, revela-se, portanto, humanamente.
Um largo tão meu conhecido/ e tão triste,/(...)/ o seu real pitoresco/ está nas portas, /umas acima/ e outras abaixo.../ portas sem ordem,/ de um tempo descuidado,/ despreocupado/ e muito personalista./ A estética, então, não se intrometia/ nos casos das famílias/ nem dos proprietários... [LISBOA: 1991, 39-40]. Quem regista estas impressões do Largo do Chão do Loureiro à Baixa lisboeta é Irene Lisboa. Em poucos versos, ela faz uma espécie de resumo daquilo que poderíamos conceber como uma construção verdadeiramente humana, personalista, uma construção essencialmente popular e vernácula que não obedece senão à sensibilidade do habitante que a constrói ou manda construir. A estética entende-se no poema enquanto regra, regra legal urbanística ou regra de gosto por assim dizer instruído. Onde este não interfere, Irene admira a humanidade das casas.
Se no poema de Irene substituirmos as portas por entradas de luz, é interessante ver como praticamente encontramos uma descrição da imagem das casas dos Pezo Von Ellrichshausen. Evidentemente, as aberturas aparentemente aleatórias nas grossas paredes obedecem a estratégias, mas o seu aspecto não deixa de nos levar de encontro tanto à humanização personalista de Irene Lisboa, como ao mistério em que os insere Pallasma.
Mal passamos da observação da imagem dos edifícios e atentamos nas plantas, cortes ou axonometrias, temos subitamente dificuldades em ver aquele triunfo da sensibilidade, do ocasional e do personalista que inicialmente nos parecera tão evidente.
O seu processo de trabalho é altamente racionalizado, é um exercício calculista e quase glacial. O trabalho esquemático e até contido na utilização da malha, a previsão de continuidades e simultaneidades entre pisos, o grande conjunto de regras que posicionam as partes num todo que é, por norma, um volume rígido, parecem-nos incompatíveis com as ideias de fantasia, de sensação e de projecção humana.

IV
Um dos projectos mais apreciados dos Pezo Von Ellrichshausen é a Casa Poli (2002-2005), um quase cubo de betão cravado numa falésia em Colimo (Chile), cuja função oscilava entre ser uma casa de fim-de-semana e uma pequena instituição cultural. Foi opção dos próprios arquitectos não criar espaços directamente nomeáveis, de forma a torna-los mais flexíveis em termos de utilização e o posicionamento é resolvido, como em quase todos os projectos, com recurso a uma malha irregular que se mantém ao longo dos três pisos da casa. Em volta da casa distribuem-se, em corredores, as escadas, a cozinha e os quartos-de-banho, de maneira a que no centro se concentrem salas e quartos, que se articulam com diferenças de pé-direito e aberturas sem portas, que os individualizam sem marcadamente os isolar, e que manipulam os planos visuais, que ora se abrem para outros espaços sobre a casa, ora conduzem à paisagem da falésia ou do mar.


De facto, a Casa Poli leva às últimas consequências a ideia de um retiro de fim-de-semana. Todos os seus espaçosse prolongam entre si mesmo sendo diferentes, porque toda a casa parece existir para permitir o conforto, o descanso e a contemplação. As funcionalidades são por isso mesmo apartadas, para que a sugestão de obrigações não perturbe a paz. Daí também o grande número de aberturas para o exterior, que trazem o ambiente natural para o interior, reforçando precisamente o isolamento. A omissão dos espaços de serviço, tanto quanto a fluidez na comunicação entre os diferentes espaços da casa também parece servir com eficácia a parte do programa que diz respeito ao espaço cultural. A facilidade com que se pode transitar de sala em sala, sem que rigidamente se saia do mesmo espaço, rejeita a ideia formal e altiva dos grandes salões da nobreza ao longo dos séculos e parece convidar à tertúlia mitificada pelos grupos artísticos mais rebeldes. Henry Miller e Anaïs Nin teriam gostado de discutir livros com os seus amigos na Casa Poli. Toda ela, enquanto espaço semipúblico, ou espaço de encontro, é feita para uma comunicação descomplexada e natural.

É um dos aspectos mais admiráveis da Casa Poli a sua ambivalência segura. Nela, consegue-se tanto a mais calorosa reunião, como a mais completa solidão em que alguém pode vaguear sentindo-se esplendidamente longe de tudo. The individual partes are connected in a virtual grid that turns the whole into a recognizable unit and presents a viable and necessary institutional option to the costumary, impoverishing norms of the 'grand container' [ARCE: 2012,19], como aponta Rodrigo Pérez de Arce. E é precisamente a utilização inteligente e atenta de um elemento à partida limitador como a malha, que faz com que, na Casa Poli, os mesmos espaços viabilizem comportamentos e sentimentos tão opostos.

V
A questão da forma é outra das mais importantes para a arquitectura dos Pezo Von Ellrichshausen, particularmente por ser uma arquitectura que lida com o volume e com a massa, mais do que com o plano.
A grande maioria das suas obram lidam com volumes puros, cubos e paralelepípedos. Esta utilização das formas puras não é simples. Culturalmente, elas são entendidas como maneiras abstractas de representar um pensamento ordenado. E, com mais ou menos adorno, estas formas básicas estão inquestionavelmente presentes no nosso imaginário comum ancestral. As primeiras cabanas eram circulares, os egípcios ambicionaram tocar o céu com construções piramidais, todas as volumetrias clássicas e medievais partem da forma regular, particularmente do paralelepípedo.
A arquitectura dos Pezo Von Ellrichshausen quase sempre parte e chega ao volume puro. Se por vezes trabalham com volumes irregulares, é interessante constatar que, de certa maneira, nunca deixa de parecer que, mesmo na irregularidade, continuam a jogar a partir de estruturas arquétipas: torres, fortalezas, muralhas, que aqui são transportadas para a função directamente habitacional através de uma redução de escala.



Um desses casos, em que o volume se apresenta irregular, é na Casa Marf, um projecto para a empresa Granturismo, em Silves. A planta da casa é hexagonal, de faces com diferentes dimensões. Nessa forma deturpada se desenvolve novamente uma malha irregular com a cozinha e os espaços de estar e jantar e a piscina interior; e um primeiro piso com um quarto de casal. O elemento essencial nesta casa é a água. A grande piscina, em frente da sala, é o centro gravitacional de todo o espaço. A piscina encontra-se limitada pelas paredes e, ainda que estas contam com grandes aberturas que a relacionam quer com o exterior, quer com o interior da casa, a presença das paredes transforma a Casa Marf num reservatório de água habitável. A água é então uma espécie de bem precioso, cuja presença ganha uma dimensão quase mística. Através dela, é como se a casa se tornasse um ambiente autónomo do bairro residencial onde, teoricamente, a Casa Marf seria construída. Os Pezo Von Ellrichshausen trabalham brilhantemente com os vazios que, sem se tornarem monumentais, evidenciam a presença aquática, e que permitem a fluência do seu rumor _através da visibilidade e do som _pelas restantes divisões da casa. A malha funciona novamente como ponto de vantagem, pois através dos seus interstícios e das sobras da sua irregularidade, é possível criar continuidades entre pisos, de maneira a transportar a água.

 
 

Várias destas características tornar-se-iam impossíveis numa forma quadrangular. Os eixos diagonais potenciados pelo hexágono irregular permitem uma manipulação maior do espaço e das suas interrupções. Ao mesmo tempo, a forma da casa vai de encontro à ideia de reservatório. Os seis alçados da casa significam seis frentes, uma visibilidade mais ampla a partir de um edifício que parte da ideia de reservatório: estes reservatórios são por norma circulares e estão erguidos a alguns metros do chão, como se anunciassem que ali está um dos bens mais essenciais à humanidade. Assim, a opção do hexágono não serve apenas uma visão estética nem uma estratégia puramente racional. Conceptualmente, este hexágono alude ao reservatório, ainda que lhe inverta o sentido: não o eleva sobre o mundo, antes abre o mundo para o seu interior.


A opção do hexágono foi também a tomada para a Casa Fosc (2007-2009) que, ao contrário da anterior, foi efectivamente construída. O maior desafio desta casa terá sido menos a sua dimensão conceptual do que as suas exigências programáticas. Trata-se da casa para uma família ligada às artes, com quatro filhos, o que previa cinco quartos, escritórios e espaços comuns com áreas consideráveis. Uma vez mais, o hexágono irregular e a respectiva malha funcionam como forma de aumentar o número de eixos que permitirão aos Pezo Von Ellrichshausen especular com mais espaço de manobra a divisão da casa. Os quartos dividem-se, como na Casa Marf, entre a cave e o primeiro piso. Neste caso, o rés-do-chão é ocupado por espaços comuns (sala, cozinha, sala de jantar). Os pisos estão ligados por uma escada em caracol, que cria uma continuidade, como se toda a casa progredisse a partir de um sistema de contínuos rebatimentos.


Tal como a Casa Marf, o hexágono, mesmo que irregular, alude à forma do círculo. Mas o seu sentido parece aqui ser bastante diferente. Sabemos, desde as construções primitivas, que o círculo comporta uma dimensão política que iguala os indivíduos no seu conjunto. E o hexágono irregular inscreve-se nessa ideia de igualdade, sem no entanto a aceitar cegamente, atendendo às convenções sociais e familiares que, evidentemente, não são as da Pré-História. Mas toda a Casa Fosc parece ser uma recriação arquitectónica da ideia de comunidade. As escadas, como uma charneira, convocam todos os espaços, quer privados quer familiares, sem recorrer a corredores. E exteriormente, além das habituais grandes aberturas de luz, toda a casa é pintada de verde, um verde texturado que recusa a pintura lisa e perfeccionista, o que cria uma ligação evidente com os elementos naturais que abundam nas redondezas. A casa devolve a vida familiar à Natureza directa, e viabiliza-lhe uma postura mais natural e calorosa, rejeitando, numa espécie de concepção neo-hippie, a hierarquia mais tipicamente burguesa na ideia de família.

VI
Uma das conquistas que, com razão, o autor de ''The Eyes of the Skin'' (1996) apontava ao trabalho dos Pezo Von Ellrichshausen era, como já vimos, a recuperação da opacidade, precisamente uma das características mais desprezadas pelos arquitectos do Modernismo. Ainda que arquitectos como os Smithsons, Mario Botta, Steven Holl ou Nuno Teotónio Pereira, tenham recuperado posteriormente o sentido do peso e da massa na arquitectura, as lições do edifício da ONU, ou da Farnsworth House de Mies Van Der Rohe parecem difíceis de contornar.
Particularmente a Farnsworth House é, com justiça, uma grande lição. A sua leveza e a sua transparência remetem-na para um estado sublime de quase inexistência. Ela constitui uma conquista muito significativa na integração da luz enquanto material arquitectónico e na valência poética e até espiritual de uma casa. São questões importantes. A leveza da construção parecia a forma mais eficaz de a relacionar com a luz. Ao mesmo tempo, será injusto dizer que, por exemplo, a obra pesada e volumétrica de Mario Botta se demite de procurar a presença da luz _ fá-lo apenas da maneira mais difícil.
Da mesma forma, é também um desafio a arquitectura dos Pezo Von Ellrichshausen: e é interessante constatar como uma arquitectura tão maciça é também espectacularmente luminosa.
Mas é igualmente verdade que, em projectos mais recentes, de cariz ainda mais experimental do que é costume, os Pezo Von Ellrichshausen têm trabalhado com a problemática da leveza, dessa tentativa de inexistência que Mies arriscara na Farnsworth House.


É o caso do projecto (não concretizado) da Casa Endo, de 2010. Se Bruno Zevi problematiza o tempo grego, excluindo-o de uma noção mais estrita de arquitectura, argumentando que não tem propriamente espaço interior percorrível, essa problema pode bem ser um ponto de partida para olhar a Casa Endo. Os Pezo Von Ellrichshausen criam uma plataforma e uma cobertura quadradas, e trabalham com o vazio contido entre esses dois planos horizontais. O espaço da casa, quadrado também, é uma espécie de ilha deslocada do centro. O resto do espaço, o vazio propriamente dito, é assinalado com pilares. À semelhança do templo grego, a Casa Endo é uma espécie de triunfo da expectativa, o vazio circundante parece convidar a um interior de pesada significação _esse interior já não é a galeria reservada do templo grego, mas uma casa perfeitamente acessível, não só fisicamente como visualmente, uma vez que as paredes são rasgadas por amplas entradas de luz. A deslocação da habitação em relação ao centro não significa uma perda da centralidade simbólica em relação ao todo _ e assim, a um tempo, os Pezo Von Ellrichshausen convocam e rejeitam o arquétipo que o templo grego não deixa de ser.


A valência da Casa Endo é, de facto, mais conceptual do que prática. A concepção da casa é bastante simples, de resto: a planta quadrada divide-se em nove quadrados iguais, estando o central vazio e, nos restantes oito, distribui-se o programa básico de uma casa. O pormenor do centro não deixa de funcionar como uma subtil ironia: nele se reinicia a referência ao templo grego, aceite e preterida de acordo com o posicionamento do habitante na casa _que ora se encontra a andar em volta de um centro habitável, se estiver no exterior; ora se encontra a caminhar em volta de um centro vazio, se dentro da casa. Os Pezo Von Ellrichshausen apresentam assim uma falsa solução, como se encarassem a provocativa posição de Zevi com um sarcasmo igualmente provocatório. Talvez porque a questão não seja tão relevante quanto perceber a experiência do lugar propriamente dita. Ou seja, independentemente do critério que utilizamos para definir o que é ou o que não é arquitectura, talvez o mais importante seja a intensidade da experiência, da relação que se cria entre pessoa e edifício. O espaço fechado ou impossível de percorrer não desvaloriza os restantes espaços do edifício, não diminui o seu potencial enquanto lugar onde se gera uma relação específica entre Homem e Mundo _o que pode ser uma forma de classificar o espaço enquanto espaço arquitectónico.
O resultado de todas estas questões é um dos projectos mais conceptuais dos Pezo Von Ellrichshausen e, surpreendentemente, um dos seus projectos tecnicamente mais simples, realistas e invulgares. Ainda que aqui reconheçamos os arquitectos da Casa Poli ou da Casa Cién, algo no projecto da Casa Endo tem um esplendor distinto _nem pior nem melhor.


Outro caso em que encontramos um desvio em relação às características comuns que unem todas as obras é a Casa Arco (2010-2011), em que o jogo entre peso e leveza é totalmente invertido. Aqui, os grandes painéis de vidro não vêm rasgar paredes robustas e pesadas _eles são a própria estruturação básica do edifício e o elemento robusto não surge senão como articulação entre os painéis. O fantasma modernista da transparência que tem na Farnsworth House o seu exemplo provavelmente mais bem conseguido é aqui retomado, mas o efeito é no mínimo desconcertante. Ao contrário da casa de Mies, que a crítica coeva viu, acertadamente, como ''ar entre um tecto e um chão'' [DREXLER: 1951], a Casa Arco não se revela da forma que uma utilização tão abusiva do vidro faria prever. A leveza das fachadas não parece conduzir senão a um todo volumétrico e maciço, cujo impacto no terreno é bruto e pesado.
A casa de quatro pisos segue uma malha básica de dois quadrados separados pelo rectângulo da caixa de escadas, com dois atliers na cave (trata-se da casa para dois artistas), sala e cozinha no rés-de-chão, escritório e quarto individual no primeiro piso e um quarto de casal e quarto-de-banho no segundo piso. Todas as divisões são muito devassadas, uma vez que as paredes exteriores são de vidro. O que defende a Casa Arco da completa transparência é precisamente a caixa de escadas, cuja superfície opaca faz com que, de cada um dos alçados, só metade da casa seja visível.


Se sabemos que precisamente a Farnsworth House foi tão criticada (inclusivamente pela própria cliente) pelo seu excesso de transparência, parece arriscado aquilo que os Pezo Von Ellrichshausen fazem na Casa Arco. Tanto tempo depois de Mies, parecem correr os mesmos riscos, senão cometer os mesmos erros. Mas a Casa Arco não parece, de forma alguma, ser indiscreta. Quando, à partida, se trata de um projecto que prometeria revelar a um ponto exagerado a vida que decorre no seu interior (e note-se que a casa está situada num bairro residencial em Concepción, Chile), o efeito de mistério parece ser ainda mais intenso, o valor da expectativa e da antecipação fazem-se sentir ainda mais. Isto, porque os Pezo Von Ellrichshausen parecem, aqui, experimentar o potencial prático dos jogos de contradição que tanto os caracterizam. A Casa Arco revela tanto que acaba por se esconder na nossa própria desconfiança de que algo mais ainda deverá haver para ver e que não conseguimos ver. É um efeito da percepção, não conseguimos dissipar a ideia de que uma casa deve ter privacidade e, perante um projecto que abdica dela, a nossa imaginação é espicaçada e perguntamo-nos o que haverá para além do que está à mostra. Nesta atitude explícita há certamente qualquer coisa de pornográfico. Como num filme pornográfico, ou pelo menos num bom filme pornográfico, a perfeição física dos actores pode ser explícita, mas a estimulação surge-nos da sua performance que vamos acompanhando e aquilo que verdadeiramente nos excita não está na esfera do visível _é a imaginação do prazer sentido. É de imaginação que se trata, também, na Casa Arco, da capacidade de sugestão que subsiste mesmo quando tudo é revelado.

VII
Mas voltemos às pinturas de Malevich antes do começo da fase suprematista. O convívio sobreposto de realidades distintas, se abria o caminho interpretativo que corria o risco de nunca se revelar a si mesmo, representava, afinal, a antecipação daquilo que se desenvolvia na nossa percepção _essa realidade nova que, em Malevich, leva à recusa da representação realista de modelos.
Não é muito diferente daquilo que sucede nos edifícios dos Pezo Von Ellrichshausen. Eles existem enquanto realidade específica, mas são também o lançar dos dados para o princípio de uma nova realidade que surgirá na nossa percepção. É nessa troca, do construído para o sentido, do antecipado para o encontrado, que os seus projectos revelam a sua força conceptual e arrojada. E é nessa troca, também, que se reinicia não só a dimensão profundamente humana, personalista, que Irene Lisboa elogiava na arquitectura popular, como também a opacidade, o mistério e a sombra que Juhani Pallasma encontra no trabalho dos Pezo Von Ellrichshausen como ultrapassagem de mais um excesso do Modernismo. A grande novidade do trabalho de Maurizio Pezo e Sofía Von Ellrichshausen será talvez essa. Ao contrário dos modernistas, que se tornaram desenfreados na sua necessidade de recusar o passado e excessivos e desadequados na sua tentativa de construir de acordo com pressupostos conceptuais ou poéticos que nem sempre resultavam em boa arquitectura, os Pezo Von Ellrichshausen parecem situar-se antes do Modernismo, ao recuperar aspectos medievais, nomeadamente da arquitectura românica, sem deixar de parte as experiências controversas e revolucionárias do Brutalismo. A fascinação pelo valor arquitectónico, directamente espacial, parece ser indissociável do valor sensitivo e sugestivo desse espaço. Os edifícios reinventam-se a si mesmos no impacto psicológico e sensível que antecipam, e continuamente convocam a realidade da paisagem e a realidade da vida doméstica em fragmentos que as redefinem, que lhes conferem significâncias novas, tal como acontecia nas pinturas de Malevich.
Assinale-se ainda que estas experimentações acontecem em projectos quase sempre para habitação e na sua maioria construídos, para se perceber como, efectivamente, o trabalho dos Pezo Von Ellrichshausen pode representar um sintoma optimista da convalescença em relação aos princípios irrealistas e quadrados de muita arquitectura modernista (e que continuam a alimentar uma série de arquitectos ainda hoje) em direcção a uma arquitectura que recupere o seu valor artístico, emotivo, humano, espiritual e sugestivo. Porque um edifício não se basta a si mesmo. É preciso não perder de vista que, enquanto espaço para ser habitado, ele precisa de sugerir para se tornar rico, precisa de antecipar um quotidiano feliz. E na arquitectura dos Pezo Von Ellrichshausen, dá-se o triunfo dessa antecipação, do visível e do invisível, do dizível e do indizível. Isso precisamente a torna tão complexa e impressionante.

9-24/Setembro/2013
 

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*ARCE, Rodrigo Pérez de. ''The Music of Forms'' in 2G, nº 61. Barcelona, Gustavo Gili, 2012.
*DREXLER, Arthur: http://farnsworth.house.pagesperso-orange.fr/historique.htm (citação de um texto de 1951)
*LISBOA, Irene. Um Dia e Outro Dia/ Outono Havias de Vir/ Poesia I. Organização e prefácio de Paula Morão. Introdução de José Gomes Ferreira. Lisboa, Presença, 1991.
*NÉRET, Gilles. Kazemir Malevich e o Suprematismo. Tradução de Maria do Rosário Paiva Bolleo. Koln, Taschen, 2003.
*PALLASMA, Juhani. ''In Search for Meaning'' in 2G, nº 61. Barcelona, Gustavo Gili, 2012.

sábado, 5 de outubro de 2013

Lugar vs espaço ou Passado vs Futuro

Com a mudança da década chega o tempo de reflexão da contemporaneidade. Ao estudar, ou reflectir o nosso presente, acabamos por pensar no território em que nos desenvolvemos, no espaço físico em que respiramos, dormimos, vivemos. O espaço como gerador de cultura espelha a nossa personalidade. Na nova década deverá então ser importante pensar na importância que a Sitio-especificidade ainda ocupa no desenvolvimento do projecto arquitectónico. Este conceito deverá compreender a noção de lugar como berço sagrado da nossa existência. Segundo Anne Cauquelin:Enquanto o lugar era imutável, impossível de vender, inalienável, porque a nossa alma aí residia, o profundo, o sagrado; o espaço democrático é, ele mesmo, partilhável, superficial, cambiável, divisível, seccionáveis. Ele é concebido como isomórfico sem todas as suas partes, sem qualidades particulares”. [1]

Ao entender que o território é importante na criação da personalidade “individual”, existe uma ligação instantânea do espaço ao meio em que está inserido – Território. O capitalismo traz-nos uma mudança em termos de espírito: enche-nos de fome consumista, corta-nos os laços com o lugar onde guardamos as nossas memórias de infância. Como tal o actual junkie capitalista vive do nomadismo, sem o sentido de lar. Em 1985 e 1989 Toyo Ito desenvolve dois programas “habitacionais” muito similares para a nova mulher japonesa. A mulher-nómada de Tóquio vive daquilo que consome, que deseja. Não está ligada às origens nem a cultura centenária da nação em que nasceu. Observando as imagens deste projecto disponíveis na monografia de Andrea  Maffei sobre Ito, podemos ter uma ideia mais detalhada da nova mulher japonesa. Os objectos idealizados para estes habitáculos ajudam a manter um estilo de vida próprio do consumismo. Vemos gabinetes para o desfolhar de revistas de moda e mexericos, mesas para consumo de junk-food assim como toucadores que reforçam a ideia da importância da aparência física. O projecto “Pao” I e II de Ito é desprendido de terreno concreto, é acima de tudo um iglo, um abrigo de vícios. Neste caso o arquitecto opera num terreno, embora abstracto, próximo do conceito de espaço de que Cauquelin nos fala. O objecto arquitectónico é antes de mais algo nómada e parasitário, ocupando o território sem se ligar afectivamente a este.


Para Cauquelin o lugar é como que um templo sagrado da nossa existência, é onde temos as nossas primeiras memórias, onde vivemos quase toda a nossa a vida e como tal não vemos nele um valor material, monetário nem uma grande necessidade de desconexão. Na remodelação de 1961 da Casa da Rua Roberto Ivens em Matosinhos, Siza Vieira, trabalha num lugar muito próprio. A remodelação da casa dos seus pais, a casa em que passou a infância e a adolescência é terreno sensível pois joga com um número significativo de problemáticas a nível sentimental. O arquitecto não toca na essência do objecto preferindo operar em casos específicos de ordem funcional como a alteração das guardas de uma escada, organização geral do piso térreo e ligação do mesmo com as restantes zonas da habitação assim como a criação de algum mobiliário. O respeito pelas memórias que ao fim ao cabo são também as suas assim como pela rotina diária da habitação que tão bem conhece e a primazia pela funcionalidade são factores decisivos para a criação, ou preservação desta máquina afectiva de habitar.
Para a nova década mantemos o mesmo ringue onde de um lado temos o espaço do novo Homem, moderno, tecnologicamente avançado, com gostos muito focalizados e o lugar como memória permanente de onde viemos. Talvez o lugar seja mais do que uma memória, mas um espelho de onde se encontra o caminho para o nosso futuro.



[1] Cautelin, Anne (2005) Sítio, lugar e mundo. In: Curadoria do Lugar – algumas abordagens da prática e da crítica. Gabriela Vaz-Pinheiro. Transforma AC; Torres Vedras

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A Importância da Cultura Tectónica no desenvolvimento do Regionalismo Crítico















1.
Regionalismo Crítico e Cultura Tectónica: em que consistem estes dois conceitos? Como poderemos relacioná-los sendo, aparentemente, tão díspares? O Regionalismo Crítico surge na segunda metade do século XX como contraponto aos avanços do movimento pós-moderno. No texto ''Por Que Regionalismo Crítico Hoje?", de Alexander Tzonis, desenvolve-se a ideia confirmando o papel do regionalismo crítico como solução para um modernismo moribundo. Este tenta criar arquitectura com o apoio dos conhecimentos vernaculares e tradicionais de cada zona. A Cultura Tectónica surge como arte de construir. Frampton, no seu texto de 1990 "Rappel à l'ordre: argumentos em favor da tectónica", caracteriza a tectónica como a identidade estrutural e material da obra mas, também como a “(...) poética do construir subjacente à prática da arquitectura e das artes afins (...)”.
Com este texto pretendemos entender em que medida é que a construção transforma a arquitectura, com a identidade e a tradição contribuem para o desenvolvimento do Regionalismo Critico.

 2.
 O Regionalismo Critico, sendo uma leitura contemporânea e actualizada de um certo gosto vernacular deverá adaptar as técnicas de construção típicas do território. Assim sendo, a tectónica estabelece relações e influências na obra de um modo determinado.                  
A arquitectura, segundo Vitrúvio, deverá obedecer a três critérios. São eles: (a) solidez, (b) funcionalidade e (c) beleza. Como tal, o acto de construir (solidez) considera-se uma personagem principal, a par da estética. É importante referir que o Regionalismo Critico desenvolve-se numa época (anos 50) de grandes avanços tecnológicos no que consta à construção; e como tal, sofre a pressão de não ser rotulado como um “voltar às raízes”. O Regionalismo Critico pretende manter a questão da tradição, não no sentido do senso comum, mas como um conceito aberto a constantes actualizações. Como tal, a arte de construir não deverá estar presa a modelos tradicionalistas, deve sim, usá-los como sabedoria adquirida para daí criar novos métodos aptos à construção em questão.
Se considerarmos como exemplo a Piscina da Quinta da Conceição em Leça da Palmeira de 1965, obra de Álvaro Siza Vieira, o arquitecto cria uma infra-estrutura de lazer ao ar-livre, de construção actual (à época) de betão, mas introduz detalhes construtivos que denotam a influência do Regionalismo Critico e do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa (1956-1960). É importante perceber a pertinência dos materiais nas obras, pois estes são elementos essenciais, juntamente com o tratamento espacial e volumétrico. Os materiais (madeira, pedra, tijolo) ajudam a uma maior integração no território, adquirem características sensoriais que de certa forma tornam o objecto arquitectónico parte do espaço em que se insere. Sendo assim, a estrutura, o esqueleto serve apenas para criar as condições, a tela em branco em que se apresentará uma certa política arquitectónica, deixando toda a poética nos pormenores. Os detalhes construtivos servem como uma segunda pele, possivelmente, a mais importante do ponto de vista conceptual.
O Regionalismo Crítico não pretende perpetuar o vernacular, mas sim actualizá-lo aos tempos de hoje. As obras de Alvar Aalto são disso exemplo, na adaptação de moldes típicos finlandeses aos critérios que estabelecem o Movimento Moderno.
Após a Segunda Guerra Mundial observamos algumas mudanças radicais na arquitectura do Movimento Moderno, é então que surge a noção de Regionalismo Crítico como a defesa da tradição, da cultura de cada região, possivelmente como uma forma de anti-globalização e de protesto contra o Estilo Internacional defendido pelo crítico Henry-Russel Hitchcock.
Num texto de 1964, o arquitecto grego Aris Konstantinidis, afirma que: "A boa arquitectura começa sempre com uma construção eficiente. (...) Em zonas onde não se encontre nada sem ser pedra, deveremos usar pedra típica." Concluímos então que quando aliada à Cultura Tectónica, o Regionalismo Crítico adquire traços que merecem o seu estudo mais cuidado. A arquitectura deixa de impor os materiais usados, as tecnologias passam ao essencial, o resto é ditado pelo território, seja ele físico ou cultural. Assim, ganhamos uma nova percepção do que é a herança cultural, algo que faz parte de nós, que nos é imposto pela terra.
Voltando a Konstantinidis: "A localização, o clima, a topografia e os materiais disponíveis em cada zona determinam o método construtivo. (...) a arquitectura não pode existir sem paisagem, clima e solo.". Parece-me importar reforçar a ideia de que a terra comanda o destino da arquitectura. O Homem deixa de ter poder total sobre o objecto, é o território quem cria e lhe dá sentido temporal. O uso de determinados materiais cria a ambiguidade temporal em que se baseia o vernacular. Nas palavras do pintor Fernand Léger: "A Arquitectura não é arte, é uma função natural. Nasce do solo como os animais e as plantas.".
A perpetuação do vernacular tem sido um tema muito debatido ao longo do século XX. Por muitos é visto como uma tentativa de manter ou reforçar um certo nacionalismo, por outros, como um dos ramos do gosto Beaux-arts. Nas décadas de cinquenta e sessenta, com o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa procurou-se encontrar um elo de ligação entre a modernidade e o sentimento de pertença a uma nação. Estudaram-se os métodos tradicionais de construção, métodos mais tarde utilizados em construções que são hoje ícones  da Modernidade Portuguesa, como,  por exemplo a Casa de Ofir de Fernando Távora (1958).
Num discurso proferido em 1983, o arquitecto Vittorio Gregotti disse em relação à ligação do terreno com o projecto: "(...) o pior inimigo da arquitectura moderna é o conceito de espaço considerado exclusivamente em termos das suas exigências técnicas e económicas, indiferente à ideia de local." Já nas civilizações clássicas era feita a distinção entre local e sítio. O local é algo sagrado e o sítio é o local tornado capitalista. O Regionalismo Crítico desenvolve-se num local com uma herança histórica, cultural, social específica e como tal influência a obra, inclusive na cultura tectónica inerente ao objecto arquitectónico. A sítio-especificidade é um conceito muito querido ao Regionalismo Crítico e principalmente quando este é lido pelo seu lado tectónico.
Em conclusão, a arte de construir ganha um novo significado quando analisado do ponto de vista regionalista. Este poderá assumir um aspecto secundário da obra ou um elemento determinante, estandarte de uma posição social, artística e principalmente arquitectural.
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NESBITT, Kate (org.); Uma nova Agenda para a Arquitectura. Antologia Teórica (1965-1995); Cosac Naify, São Paulo, 2006
FRAMPTON, Kenneth; Studies in Tectonic Culture; The MIT Press, Cambridge, 1995
TRIGUEIROS, Luiz; Álvaro Siza: 1954-1976; Blau, Lisboa, 1997
VAZ-PINHEIRO, Gabriela (org.); Curadoria do Local: algumas abordagens da prática e da crítica; Transforma AC, Torres Vedras, 2005
HITCHCOCK, Henry-Russel; Arquitectura de los siglos XIX y XX; Cátedra, Madrid, 2008