(sobre ricardo bak gordon)
1.
Com a antecipação e a concretização de um descontrolado boom económico, o Brasil tem sido, desde há alguns anos, merecedor de grande atenção por parte da Europa. Portugal levou essa atenção a extremos autodestrutivos (exemplo: o Novo Acordo Ortográfico). No caso da arquitectura, não têm faltado arquitectos europeus fascinados com o problema das favelas, tão bem retratado no filme de Fernando Meirelles 'A Cidade de Deus' (2002). Não será de todo incompreensível este interesse, que permitiria estudar soluções pragmáticas para as exigências com que os arquitectos têm que lidar.
No caso português, o interesse dos arquitectos pelas favelas tem outros contornos, uma vez que, no passado, não faltaram estudos sobre muitos dos mesmos problemas da habitação e da construção. Como aponta Luís Santiago Baptista [2012:20] figuras incontornáveis como Keil do Amaral e Fernando Távora, com a sua crítica da ilusão ruralista de arquitetura do Estado Novo, e iniciativas como o Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal, com a sua vontade moderna em aprender com o vernáculo e o tradicional, tiveram um papel fundador na constituição da identidade da arquitetura portuguesa moderna e contemporânea. O que estava em causa com o Inquérito (1955-1961) não era tanto o catalogar de soluções ou de estéticas regionais nas arquitecturas vernácula, popular e tradicional em Portugal, quando compreender como aquelas soluções e aquelas respostas fariam sentido na construção moderna.
Ainda que o Inquérito se centrasse nas zonas rurais (e pode ser argumentado que o problema das favelas é um problema citadino), ele mostrava que, na arquitectura popular, a construção do espaço obedecia imediatamente perante as exigências realistas do modo de vida e do modo de estar. A arquitectura do Racionalismo tentou precisamente isto: que o projecto se resumisse a um exercício prático e despojado, que se preocupasse com problemas e não se distraísse em questões estéticas, de forma a fazer uma arquitectura mais funcional e razoável. As arquitecturas populares têm todas estas características, e sem abdicar de um estilo. Estilo, escrevo eu? Precisamente. A inclinação estética, a inclusão de características que tentam destacar a casa, são aspectos igualmente complexos que o Inquérito revela.
Como explica ainda Santiago Baptista [2012: 20-21], com o processo de modernização emergiu uma tendência para sobrevalorizar o urbano em detrimento do rural. O mundo rural foi sendo remetido para um plano secundário à medida que se acentuava a sua improdutividade numa sociedade cada vez mais industrializada e terciarizada, levando à sua silenciosa fragmentação e desagregação. Isto talvez explique por que um arquitecto inicialmente tão influenciado pelos ensinamentos do Inquérito, Álvaro Siza, a partir de meados dos anos 70 começa a distanciar-se cada vez mais desses ensinamentos (que, aliás, veicularam a única fase verdadeiramente interessante da sua obra) e entra na sua fase mais auto-referencial e ascética. Um outro arquitecto, Fernando Távora, havia sido perpetuamente influenciado pelo manancial contido no Inquérito, e até às últimas obras, experimentaria com perícia a utilização das soluções tradicionais quer em contextos rurais, quer em contextos urbanos.
O valor principal quer do Inquérito, quer do trabalho dos arquitectos que foram mais influenciados por ele, não era a sua estranheza plástica e nem sequer, directamente, a eficácia com que resolvia os problemas espaciais. Esta última tinha importância apenas no sentido em que previa uma relação única com o tempo. O reaproveitamento de muitas características da arquitectura tradicional do ambiente rural para uma arquitectura moderna direccionada muitas vezes para a cidade era uma espécie de revisão do conceito ocidentalizado de tempo tripartido (passado, presente, futuro), para chegar a um novo conceito em que o tempo é entendido como um contínuo onde certas questões são permanentes e outras dependentes de épocas. Ou seja, era uma pesquisa do passado para a definição de um futuro. E se a Escola do Porto, inicialmente, foi pródiga em compreender tudo isto, fazendo do Inquérito uma espécie de bíblia, rapidamente o abandonou em detrimento da criação de uma pequena família arquitectónica de gestação própria, e sobre a qual se fechou cerradamente, até aos dias de hoje.
2.
O Inquérito torna-se importante em Lisboa com relativo atraso. Um dos arquitectos cujas obras, ainda hoje, mais devem aos ensinamentos quer práticos, quer teóricos das arquitecturas vernácula, popular e tradicional, é Ricardo Bak Gordon, arquitecto lisboeta e essencialmente formado em Lisboa. Trata-se de um arquitecto cuja obra, muitíssimo coesa, investiga profundamente uma série de questões espaciais interligadas. O seu sistema de referências tanto passa pelo vernáculo, como pelos melhores edifícios de Loos, como por universos ainda apenas imaginados, como o scy-fy. Os espaços formam-se com massas pesadas, mas somos surpreendidos por elementos de grande delicadeza e a preocupação com o comportamento do edifício face ao terreno permanece como uma pergunta de múltiplas respostas.
O primeiro projecto construído de Bak Gordon foi uma casa no Cabo da Roca (1993) e, desde então, grande parte da sua obra tem estado ligada à habitação ainda que, particularmente nos últimos anos, tenha projectado vários edifícios públicos. Mais ainda, é de notar que Bak Gordon não se afirmou trabalhando apenas ou principalmente em Lisboa. Alguns dos seus trabalhos mais interessantes encontram-se no Alentejo, no Algarve e até no Brasil.
3.
Entre a Casa em Boliqueime (2000-2002) e a Casa em Quelfes (2003-2007), há vários pontos comuns. AS começar pela paisagem tórrida em que ambas se situam, no interior algarvio. Apesar das árvores que pontuam os lugares, ambas as paisagens têm qualquer coisa de desértico, de quase árido. A questão climática tem também o seu peso, particularmente porque se traduz em condições lumínicas e térmicas bastante difíceis. Ambos os projectos pressupõem um difícil confronto com estas condições e Bak Gordon responde-lhes com uma alusão intensa à arquitectura popular.
Aquilo que poderia parecer um posicionamento ideológico ou o evidenciar de uma referência não o é _ou pelo menos não o é inteiramente. Se a Casa em Boliqueime ou a Cada em Quelfes vão buscar a arquitectura popular, isso prende-se, essencialmente, com a eficácia das suas respostas face aos problemas apresentados pela realidade geográfica e climática. Ambas as casas se apresentam ao exterior com paredes brancas que reflectem a luz, evitando a absorção do calor e, partindo de uma geometria pura, por efeito de subtracção de fragmentos, criam pátios cobertos que permitem uma permanência no exterior resguardada da intensidade do sol.
No caso de Boliqueime, o aspecto mediterrânico e vernáculo confronta-se, na frente onde se encontra a piscina, com construções de pouca identidade, vivendas impessoais que fazem prever os resultados da exploração turística do Algarve, mesmo do interior. Bak Gordon rejeita essas fórmulas e opta por rever toda uma tradição de cultura tectónica da zona. A planta em L da casa distribui os espaços entre público e privado _de um lado a cozinha e a sala de jantar e estar, e do outro os quartos, ficando entre eles um escritório que podemos entender como espaço semiprivado. Mas esta divisão acaba por não ser rígida. Cada um dos espaços tem uma porta para o pátio (com excepção da sala que tem duas) _ e se, por um lado, as estreitas portas permitem a entrada de luz sem um invasão excessiva do calor, por outro, também reforçam a presença dos habitantes na casa e a sua relação com a paisagem, nem só visual, como propriamente física. As ideias de fechamento e de desconfiança face ao mundo que são preocupações básicas na construção de uma casa nos dias de hoje, mesmo na província, não têm lugar nesta casa. Se o próprio Bak Gordon fala do modo como olhamos para a paisagem viva, para a forma de a habitar para que seja possível acompanhar e (...) reescrever o modo de olhar a relação do homem com o mundo [CARVALHO: 2005,115], esta casa parece pensar já essas questões.
Trata-se de um espaço convidativo, aberto generosamente, mas sem excessos, que enfrenta a paisagem sem confundir-se com ela e que parece situar-se contra a tendência do homem moderno e turístico, o homem narcísico que habita o seu castelo como uma ilha fora do mundo; para suscitar o homem que se relaciona com o mundo, que procura o seu lugar nele, ressuscitando, assim, os valores humanos que estão comportados na arquitectura tradicional que aqui se convoca.
A casa em Quelfes parece prosseguir na mesma investigação, mas movendo-se com mais segurança num terreno interpretativo, ainda sobre a arquitectura tradicional e vernácula. É talvez um dos projectos mais complexos de Ricardo Bak Gordon. Nas palavras do arquitecto, A casa acaba por nascer como a marcação de uma centralidade abstracta, respondendo ao clima e ao programa (...) É uma concha virada ao contrário, um Cabanon [CARVALHO: 2005, 127]. De facto, a casa insere-se num terreno de pouca inclinação, rodeado apenas de arbustos baixos e pouca construção. A cobertura irregular, de geometrias quebradas, apesar da grande quantidade de pátios, confere à habitação o aspecto de um meteorito ali caído por acaso, o que seria precisamente contrariar a inclinação que Bak Gordon demonstrara na casa de Bolqueime. Assim, a casa é dividida numa malha quadrangular por onde se orientam massa construída e vazios (pátios). Todos eles são cobertos com excepção de um. Ainda que este não esteja ao centro da casa, fera um ponto de tensão, uma espécie de eixo gravitacional. De repente, tem-se a sensação de que há, naquele ponto do terreno, qualquer força que justifica que a casa tenha crescido à sua volta. A planta do espaço da casa é irregular, parecendo ser sido subtraída ao espaço exterior. Os quartos e o escritório agrupam-se de um lado, a cozinha de outro e, entre ambos, a sala parece ser não aquilo que sobrou, mas aquilo que havia originalmente. É de resto um espaço bastante rico, que se subdivide sem perder a unidade e que se insinua como percurso sem deixar de ser espaço de permanência.
Outro dos pormenores mais emblemáticos da casa em Quelfes são as coberturas dos pátios, cuja geometria tensa origina efeitos visuais impressionantes. Não será por acaso, uma vez que é neste detalhe que se realiza um dos aspectos mais interessantes da obra de Bak Gordon, uma espécie de concretização do tempo, em que uma estrutura ou uma referência do passado está presente, mas não é repetida: ela sofre as alterações do tempo, mantém a sua identidade, mas sofre metamorfose, relembra declaradamente o passado, mas não evita o seu lugar no presente. É nesta concretização do tempo, ou dos tempos, que o arquitecto exerce também a sua crítica: faz uma revisão do passado e enfrenta descomplexadamente todos os caminhos de continuidade e quebra em relação a ele.
4.
Nos filmes de scy-fy, em que se projecta um futuro hipertecnológico que ameaça a sobrevivência da Humanidade, processa-se uma imaginação do desastre, como Susan Sontag certeiramente lhe chamou, em que a única possibilidade de sobrevivência está no Poder. Invariavelmente, qualquer produção de scy-fy nos aponta que, nesse futuro, só os poderosos (da política ou das finanças) poderão escapar ao extermínio. Os poderosos encontram-se por norma concentrados em torno de uma grande empresa que, tanto na literatura como no cinema, está sediada num edifício cuja altura se destaca do skyline das cidades, que por norma são caóticas na aproximação ao colapso. Vemos que os arquitectos da Escola Comercial souberam retomar da Idade Média na Europa a ideia da altitude como símbolo do Poder. Mas se recuarmos até ao Antigo Egipto uma postura bastante diferente. Os edifícios por excelência construídos em altura, as pirâmides, eram grandes elevações que aludiam à ascendência do espírito, à conquista da plenitude da vida no Além.
Olhando, portanto, a História e a Cultura, encontramos no mínimo interpretações ambivalentes da elevação de um edifício em relação ao contexto. Uma das obras mais conhecidas de Ricardo Bak Gordon é a fábrica de azeite Oliveira da Serra em Ferreira do Alentejo, edifício que se situa num vasto campo de oliveiras. À primeira vista, hesitar-se-ia em falar desta fábrica como um edifício construído em altura. Pelo contrário, a horizontalidade é o valor que se impõe se observarmos a fábrica como objecto arquitectónico. Mas o seu comportamento no terreno é bastante distinto. A fábrica, especialmente o arranjo da cobertura, parece um elemento, efectivamente comprido é certo, que flutua sobre o campo de oliveiras. Ela é horizontal, mas está elevada sobre o terreno. A presença da fábrica tem, ali, a presença que, no scy-fy, tem o edifício da grande empresa, mas não tem a sua valência simbólica. Aqui, a azeitaria é um ponto de convergência, uma espécie de macro-celeiro onde se destina o que vier daquelas árvores. Se, por um lado, a elevação traz à fábrica, por si só, um aspecto algo futurista, como um nave que ali está estacionada, esse aspecto também altera a valência do edifício: é ponto de convergência e igualmente ponto de partida, uma vez que dali sairá, para outros destinos, o produto final.
Apesar de se tratar de um edifício a grande escala _o programa assim o exige _há uma contenção muito grande na sua concepção. Bak Gordon trabalha a fábrica essencialmente em planta e em detalhe. A sua primeira atitude parece ser a de perguntar ''o que é uma fábrica''. E a resposta é simultaneamente absorvida e preterida pelo projecto. Os amplos espaços evitam ser puramente funcionais pelo recurso a características estéticas que, mesmo que não actuem directamente sobre a percepção que temos dele. Se Merleay-Ponty [1999,9] alerta para os perigos de substitui[r] o próprio mundo pela significação do mundo, essa ideia também nos força a olhar o mundo, neste caso o edifício, mais atentamente, e percebermos o impacto que ele tem em nós, ainda antes do seu significado. Aí, os detalhes revelam a sua importância. Os painéis de policarbonato alveolado no plano inferior da cobertura, a própria geometria tensa e subtil dessa cobertura, a utilização da cor nos interiores, as escadas _todos estes detalhes passam pela estética (o apelo visual do edifício) mas vão essencialmente tornar a fábrica numa atmosfera específica, numa fábrica que excede o conceito vulgar de fábrica.
A planta segue uma lógica bastante simples, áreas amplas, organizadas segundo uma grelha que orienta todo o piso térreo e que se prolonga para o primeiro piso, que conta apenas com um segmento dessa grelha, onde se localizam espaços administrativos. Deste corredor que é o primeiro piso nascem as vigas de sustentação da cobertura, o que o transforma numa espécie de cockpit de todo este complexo.
Há neste projecto uma certa ligação com a tradição, mas que decorre a um nível bastante diferente do que acontecia nas casas em Quelfes ou Boliqueime. Aqui, a matéria com que Bak Gordon lida é a do trabalho, a do trabalho bastante específico da apanha da azeitona e da produção do azeite. A fábrica é uma interpretação desse trabalho que, desta vez, se desprende do passado e faz uma espécie de viagem até ao futuro daquela tradição. O funcionamento, o trabalho propriamente dito, é o mesmo (nunca o edifício sacrifica a sua eficácia em detrimento dessa interpretação) mas é transformado nalguma coisa mais poética, ao mesmo tempo que mais moderna. Aliás, a própria transformação de uma matéria (a azeitona, neste caso) num produto é um processo que prevê a força da passagem do tempo. Bak Gordon constrói com vista não à origem mas ao resultado. O aspecto um tanto scy-fy da fábrica deve-se a isso mesmo: o pensamento que ela representa situa-se no final daquele trabalho, a fábrica é o final do processo que começa muito antes dela.
5.
Se grande parte das obras de Bak Gordon se situam em terrenos de localidades rurais ou periurbanas, uma análise de algumas das suas obras em contexto urbano, particularmente em Lisboa, mostra-nos que, por vezes recorrendo a gramáticas e comportamentos projectuais um tanto diferentes, o arquitecto não deixa de trabalhar (com) as mesmas questões e, particularmente, com a problemática do tempo.
O caso do conjunto de casas em S. Bento (2008) será um dos mais desafiantes pela sua localização. Trata-se de uma das ruas mais icónicas de Lisboa, que faz a ligação entre o Largo do Rato e a zona de Santos, passando pela Assembleia da República, cuja estética neoclássica e despersonalizada contrasta substancialmente com aquela que existe no resto da rua, em que a maioria das casas, construídas quase todas durante o século XIX, apresenta fachadas simples mas desencontradas entre si e com rebocos de diferentes cores ou azulejos.
Neste caso, o contexto seria dado pelo aspecto popular daquela rua, enquanto sítio construído tanto quanto vivido.
O arquitecto opta por fazer uma leitura simples das fachadas, mas que compreende interessantes subversões. Por exemplo, a resolução das inclinações nos pisos térreos que se resolve nas três casas com o recurso a janelas e portas desiguais, ou então as diferentes materialidades, quer de edifício para edifício, quer nas fachadas de cada um e, claro, a questão da cor: só a última das casas (para quem desce do Largo do Rato) tem uma cor (cor-de-rosa), ao passo que a casa do meio prolonga um pouco esse cor-de-rosa, para se tornar azul e a terceira, prolongando o azul, torna-se verde. A utilização destas e de outras cores, sempre em suaves tons pastel, está muito associada à arquitectura tradicional de Lisboa. Bar Gordon retoma essa tradição, mas atribui-lhe tal importância que ela se desprende dos limites das próprias casas, como se a cor se servisse das casas e não o contrário.
Um dos conceitos definidores para o projecto das três casas de S. Bento era que as três fossem unidas por um espaço traseiro comum. A ideia parece particularmente difícil, uma vez que as casas não são contíguas. O conjunto das casas (incluindo as preexistentes) é então tratado como um todo de geometrias irregulares que moldam um espaço traseiro que acentua essas geometrias e cria outras na continuidade, de maneira a que o espaço comum tenha também momentos diferentes, momentos quase semiprivado, sem recorrer à criação de limites propriamente ditos.
Cada uma das três casas obedece a programas de habitação diferentes, mas nas três existe o problema da geometria (nenhuma é inteiramente ortogonal), e Bak Gordon lida com diversos eixos que subdividem as casas e que se reorganizam de piso para piso de maneira a controlar agrupamentos funcionais ou a privacidade de cada espaço específico.
Nas duas casas em Santa Isabel (2003-2010), o arquitecto trata alguns dos mesmos problemas, nomeadamente o das relações contextuais e do espaço vazio que existe nas traseiras dos edifícios entre ruas. Este projecto, no entanto, parece levar esta segunda ideia às últimas consequências. Numa rua em que todos os edifícios se destacam pela verticalidade, Bak Gordon acentua propositadamente a horizontalidade do enorme vazio onde as duas casas irão desenvolver-se.
Este é um dos projectos mais impressionantes de Bak Gordon, e talvez aquele que mais questiona as noções básicas de contexto espacial e de contexto cultural. É, mais que qualquer outro projecto deste arquitecto, um projecto transformador. Logo para começar, a sua abordagem à implantação é bastante inovadora e inteligente, propondo uma solução poética e coerente ao problema da construção no centro de Lisboa. Apesar das ruas serem contínuos raramente interrompidos de massa construída, há ainda muito espaço vazio em Lisboa, e há certamente formas de optimizar esse vazio. O projecto de Bak Gordon para as casas em S. Bento apontava já uma solução, e estas duas casas em Santa Isabel apontam outra, consideravelmente mais radical.
Mas a revisão mais extrema que aqui encontramos não é a do terreno, é a do próprio conceito de casa. A casa, aqui, é abolida enquanto todo subdividido. Os espaços de casa são efectivamente peças de massa ligadas por corredores que se recortam no vazio do espaço ajardinado. Só quando entendemos verdadeiramente a presença aglutinadora e magnética destes jardins percebemos como através deles essas peças da casa são convocadas para formar um conjunto. Conjunto que não é unidade, uma vez que não pode nunca excluir a presença de um elemento de natureza redondamente diferente (o jardim).
Esta abordagem ao problema da casa reconduz-nos ao espaço vazio entre prédios. Podemos entender que não faça sentido encher esses vazios intersticiais com mais massa construída _poderia ser prejudicial em termos geofísicos a perda de tanta quantidade de solo nu ou ajardinado. Mas, olhando com atenção a intrincada planta destas casas, vemos que a solução de Bak Gordon constrói menos do que deixa vazio, delimita com massa vazios que são tratados e mantidos, conservando o solo.
Olhando, aliás, o resultado final, percebemos que o pensamento e a pesquisa sobre todas estas questões nem sequer sacrifica a integridade das casas. O seu funcionamento em peças ou em partes acaba por tornar os espaços mais acolhedores e contemplativos, e inclusivamente mais privados ou mais protegidos. As casas acabam por funcionar como pequenos abrigos integrados num jardim. E o aspecto maciço do betão tem um efeito bastante imprevisível também: não só ele não contribui para que as casas pareçam demasiado brutas _pelo contrário, parecem extremamente delicadas em vários momentos _como mesmo ao parecerem pesadas e maciças, acabam por anular o excesso ao realçarem a presença suave e harmoniosa dos jardins.
No que toca a programas, as duas casas respondem perante exigências bastante diferentes. Uma delas é de dimensões bastante menores, com apenas dois quartos e uma sala de estar e jantar, além das funcionalidades usuais. Já a outra conta com três quartos, dois escritórios, uma sala de jantar e uma sala de estar. No entanto, ambos os programas são concretizados da mesma forma. Através de passagens mais estreitas são ligados corpos mais amplos sempre colmatados com jardins _e no caso da casa maior, com uma piscina _que acabam por funcionar como compartimentos também.
Tanto as casas em S. Bento como as casas em Santa Isabel podem representar propostas interessantes relativamente ao futuro da construção nos centros urbanos. Por um lado, o aproveitamento consciente e comedido dos espaços vazios entre prédios é a proposta mais directa. Ao mesmo tempo, Bak Gordon parece ir buscar ao passado da cidade de Lisboa outra solução que diz respeito à construção tanto quanto à habitação. Isto porque a partilha de espaços exteriores por casas diferentes remete-nos um pouco para os pátios dos bairros mais populares da cidade. Contrariamente às ilhas do Porto, os pátios de Lisboa não foram, na sua maioria, problemáticos, razão pela qual as primeiras foram centrais para as Operações SAAL (1975-76) no Porto, e os segundos não tiveram a mesma presença nas mesmas operações em Lisboa. E numa altura em que arquitectos e não só estão a consciencializar-se em relação ao co-living (muito frequente nos estudantes que se deslocam para as cidades universitárias), não deixa de ser interessante que Bak Gordon revisite, ainda que de forma muito pessoal, a lógica dos pátios lisboetas.
6.
Ricardo Bak Gordon é um arquitecto que começa a trabalhar algumas gerações à frente daqueles que trabalharam no Inquérito e beneficiou, provavelmente, dessa distância temporal. Isto porque, passadas várias décadas, a importância do Inquérito foi assimilada, como assimilado foi o seu interesse principal, a construção em face do tempo. O trabalho de, por exemplo, Fernando Távora, não nos deixa espaço para dúvidas: as soluções do passado devem ter presença na arquitectura para o futuro.
E justamente a questão do tempo parece ser central na obra de Bak Gordon.
Por um lado, e particularmente nas obras em contexto rural, ou em terrenos menos condicionados por construção prévia, encontramos referências muito directas à arquitectura tradicional e constatamos a sua eficácia na resolução dos probemas intrínsecos quer à casa, quer ao local onde a casa se encontra.
Por outro lado, em contexto urbano (Lisboa principalmente) encontramos o arquitecto a reflectir sobre as tradições habitacionais da cidade, reinventando-as com vista ao futuro da habitação e da construção na cidade.
E a questão do futuro, ou de uma certa projecção do futuro, tem também lugar estético e não só, em várias obras de Bak Gordon. E se a fábrica em Ferreira do Alentejo é exemplo disso, não o são menos os projectos para o Parque Escolar, onde sentimos novamente o piscar de olho ao scy-fy, que aqui acontece de forma mais optimista.
Não é errado que assim seja. A arquitectura não deixa de prever uma certa durabilidade que não deve ser assegurada apenas a nível construtivo. Garantir que ele continue a funcionar com o passar do tempo é exercer uma crítica sobre arquitectura e também uma crítica sobre as cidades. Crítica essa que visará, não é preciso dizê-lo, o crescimento saudável dessa cidade, e o crescimento saudável do exercício da arquitectura.
O facto de grande parte das obras de Bak Gordon se destinarem a uma alta burguesia não se traduz numa limitação. O pensamento sobre aqueles problemas é integrado organicamente nos projectos, que se oferecem, então, a várias leituras, quer pragmáticas, quer tectónicas, quer teóricas.
Lisboa, 24.9 - 16.12.13
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*BAPTISTA, Luís Santiago. Persistências rurais in "Arqa", nº 101, Março/Abril 2012
*CARVALHO, Ricardo. Uma Conversa com Ricardo Bak Gordon e Ricardo Carvalho in "Bak Gordon", Lirbus, Lisboa, 2005
*MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª edição, Martins Fontes, São Paulo, 1999