domingo, 29 de setembro de 2013

desenho e espaço, triunfo e sacrifício

(sobre Zaha Hadid)


1.
É incontestável que a cultura tem necessidade dos seus ídolos, dos seus máximos pontos de referência. Numa sociedade inteiramente consciente, a cultura teria um lugar central, uma vez que é na cultura que se definem, que se pensam e repensam uma série de valores, de comportamentos e de ideias que não só orientam uma sociedade, como contêm sempre o embrião de novas orientações para a mesma sociedade, permitindo a evolução e a renovação. Evidentemente, nem nessa sociedade ideal todas as propostas culturais mereceriam a mesma atenção e o mesmo reconhecimento. O que se exigiria era que houvesse espaço para a apresentação de todas as propostas, de maneira a disponibilizar o máximo de opções para essa evolução. Incontestavelmente, esse não é o mundo onde vivemos. A cultura é relegada para planos absolutamente secundários não só pela esmagadora maioria da camada política como, por consequência, pela opinião pública em geral. Num contexto tal, a cultura precisa, mais ainda, dos seus ídolos. Os ídolos são aqueles que granjeiam uma fama e um reconhecimento que, se por um lado os isenta de certa crítica, por outro faz com que as suas propostas sejam conhecidas fora de um ''meio'' mais restrito.
A arquitectura, como área cultural, não é excepção. Se houvesse um interesse verdadeiro em valorizar a arquitectura, não haveria necessidade de um ídolo. Propostas variadas, incluindo não só as daqueles que contam com larga experiência, como aqueles que se encontram no início do seu percurso, mereceriam ser ouvidas, pelo menos pelo próprio ''meio'', o que não só permitiria um músculo criativo muitíssimo mais forte, como traria alguma justiça e alguma liberdade à prática da arquitectura. A realidade é a oposta: só merecem, na grande maioria dos casos, ser ouvidos aqueles que não só contam com uma grande experiência, como contam ainda com um reconhecimento amplo, que muitas vezes se prende muito mais com contextos e com contingências, mais do que pela qualidade da arquitectura propriamente dita. Um arquitecto pode ter uma obra medíocre em termos arquitectónicos e artísticos, nula em termos de pensamento, mas que, por uma razão ou outra, fascina o grande público não especializado e torna-se ícone do próprio público especializado. Está isento, como se disse, de uma série de críticas que o seu trabalho receberia se fosse assinado por outro arquitecto, e impõe-se de tal forma que se torna difícil para outros arquitectos ter espaço para as suas propostas, não só directamente na área da construção, como até nos meios críticos ou experimentais. Por um lado, essa realidade origina o surgir de uma série de propostas alternativas, obrigou muitos arquitectos a serem criativos na forma como apresentam o seu trabalho, e afastou-os das formas mais óbvias de mostrar o seu trabalho. Por outro, fez com que surgissem também aquilo a que chamamos os arquitectos superstar.
O arquitecto superstar não é diferente da estrela da música pop. Uma estrela de música pop faz música que pode ter ou não ter qualidade enquanto produção artística, mas que nunca abdica de um tratamento comercial que garante a sua transmissão a um público o mais vasto possível. E é tão estrela pop uma Christina Aguilera, com a sua voz potente, com letras muitas vezes de insuspeitada qualidade e uma panóplia de referências cultas invulgares que a tornam estranha para o universo que integra, como é estrela pop uma Lady Gaga em cujo trabalho a música em si não tem um papel particularmente importante, pelo menos em comparação com a imagem espectaculosa e artificial que convoca uma série de referências batidas que parecem originais a um público que desconhece a história da música pop. É tão estrela pop uma Ke$ha com o seu universo de glitter e unicórnios e as suas canções de mensagem frívola que não contestam nada, como é estrela pop uma Jennifer Lopez que abre caminho às latinas na indústria americana, assumindo as suas raízes e reinventando-as num contexto diferente. Ou seja, pode ser tão estrela pop um músico que é the real deal, como um músico que não é propriamente um músico, mas que tem o dom do oportunismo que lhe permite impor-se; é tão estrela pop um músico que não contesta como um músico que arrasta um impacto social.
Camille Paglia defende, em ''Vamps & Tramps'' o valor da cultura pop como sintomático e definidor das tendências do público geral, e reconhece a capacidade da pop de converter qualquer referência num elemento que se difunde a larga escala. O que o pop tem, no entanto, de mais definidor, é que o produto não é tão importante como a sua venda. Fabrica muito mais superstars do que o rock, muitas mais que o folk, o indie, a electrónica, precisamente porque o que define o pop é a sua capacidade de vender, de ser consumido. É uma arte ao serviço do capital, mas também de um sistema de fama, de fascinação pela persona mais do que pelo trabalho.
À primeira vista, parece estranho comparar o arquitecto superstar com a estrela da música pop. Até porque podemos falar de uma arquitectura pop propriamente dita, que não significa que os arquitectos que a projectaram se tenham tornado estrelas, e muito menos que todos os arquitectos superstar sejam de um universo pop. Mas há que entender o pop como uma cultura, mais do que como um estilo. Até porque, se formos olhar para os exemplos de música dados acima, vemos que a música de Christina Aguilera tem um pé firmemente pousado no soul, J.Lo tem claras componentes R'n'B no seu trabalho e a própria Ke$ha se tem desviado em direcção a uma espécie de indie electrónico. Mas culturalmente, todas são pop.
Da mesma forma que muitos arquitectos superstar, com propostas muitas vezes diametralmente opostas, culturalmente não deixam de ser pop. Enquanto cultura do consumo, da fama e até do perigo de uma frigidez crítica, o superstar é quase automaticamente sinónimo de pop.
 
 
2.
Na arquitectura, o problema do arquitecto superstar tem merecido a atenção de alguns teóricos, e até de muitos arquitectos, ainda que muito raramente tenha merecido crítica ou questionamento por parte dos próprios arquitectos que não podem senão ser superstar. O problema essencial que apresentam, é uma espécie de complexo de eucalipto: enraízam-se de uma forma que não permite o crescimento de nada em volta. Isto significa o branqueamento de uma série de propostas que, em muitos casos, teriam até algo de muito valioso a mostrar. É sabido que ouvir apenas um pequeno conjunto de propostas num universo muito vasto não chegará para criar uma renovação. A função dos arquitectos, como artistas que são, é fazer perguntas. Se ouvimos apenas as perguntas de um pequeno conjunto, será pequeno o conjunto de respostas que obteremos. Esta, aliás, é uma postura muito pop. A despreocupação com o questionamento e com as condições em que existe o contexto em volta de um indivíduo é a razão pela qual a pop, ao contrário de muitas outras subculturas, se torna pastilha-elástica e tem dificuldades em perdurar no tempo. As suas renovações são lentas e quase acidentais e a sua capacidade autocrítica é irrelevante ou até pouco recomendável, porque pode tornar uma produção menos vendável. 
Assim é na arquitectura muitas vezes.

3.
Um dos casos mais fascinantes de arquitecto superstar é o da iraquiana Zaha Hadid. O seu percurso não deixa de ser surpreendente. Estudou matemática e só depois arquitectura, foi estagiária no O.M.A. e só em 1993 terminou a construção do seu primeiro projecto a ser concretizado, a IBA Housing em Berlim. Desenhadora de extraordinária sensibilidade, Hadid integra-se declaradamente na corrente desconstrutivista, dando continuidade ao trabalho de Frank Gerry e do seu antigo patrão, Rem Koolhas. A sua fama foi crescendo, os seus edifícios impressionavam porque não dissimulavam a sua incontestável qualidade de desenho, foi a primeira mulher a receber o Prémio Prtizker, em 2004.
Hadid tem hoje um dos maiores atliers do Reino Unido, com uma extensíssima lista de colaboradores, já assinou trabalhos fora da arquitectura, quer sozinha (por exemplo no design de candeeiros), quer em parceiras (como aconteceu com o músico Pharrel Williams dos N.E.R.D.).
Ela é verdadeiramente uma arquitecta superstar, e talvez aquela que o é mais justificadamente. 
Acima falei de Jennifer Lopez, e do grande impacto que ela teve, absolutamente seminal, quando surgiu com o seu primeiro álbum, 'On The 6' em 1999. Uma mulher latina, que assumia as suas raízes na música que lançava nos Estados Unidos, conquista respeito e reconhecimento que se mantêm até hoje, acaba com o cliché da menina bonita, magra e loira americana como única capaz de se tornar estrela e abre caminho para uma série de outros nomes de raiz latina para se afirmarem também na América, indústria mais potente para a cultura pop.
 

Com Zaha Hadid, o valor de choque e de impacto social não é menor. Ela é uma mulher que triunfa num mundo tradicionalmente masculino, o seu trabalho ganha um destaque absolutamente insólito, e, nisso, abre caminho a um grande número de mulheres arquitectas, cuja presença no ''meio'' não era nunca conseguida sem grandes esforços, muitas vezes frustrados. A polémica recente em torno de Denise Scott-Brown, mulher de Robert Venturi e sua companheira de trabalho, que exigiu uma cerimónia de entrega do Prémio Pritzker, que fora atribuído exclusivamente ao marido, foi sustentada por uma série de abaixo-assinados e de movimentos em redes sociais. Mesmo assim, a cerimónia foi-lhe recusada, mesmo tendo já Zaha Hadid ganho o prémio. Podemos também argumentar a existência e a proeminência de uma arquitecta como Allison Smithson, mas é preciso recordar que a grande maioria do seu trabalho, e particularmente do trabalho construído, é assinado em parceira com o marido, Peter Smithson.
Zaha Hadid é uma mulher que encabeça sozinha um grande atlier, é vencedora do Pritzker, tem uma persona pública bastante forte. Some-se a isto o facto de ser de origem iraquiana, numa era que é dramaticamente afectada pela guerra Estados Unidos vs. Iraque, e também tendo em conta os gravíssimos problemas da condição feminina no Oriente, e vemos que era de todo improvável que uma pessoa nestas condições conseguisse ascender ao estatuto que Zaha Hadid tem actualmente.
Independentemente das visões críticas presentes e futuras que possamos ter sobre o seu trabalho enquanto arquitecta, é certo que Hadid deixará um legado único, que é o de ter ampliado o acesso de inteligência à arquitectura, ter desfeito a tradição falocrática na arquitectura e ter mostrado que é possível que quem parece ter todas as condições para ser mal-sucedido na arquitectura contrarie precisamente essa tendência.

4.
Tratando-se muito embora de um trabalho iniciático para Zaha Hadid, a Vitra Fire Station, em Weil am Rhein (Alemanha) continua sendo um dos seus projectos mais fascinantes. Nele, surpreende o objectivo já muito definido de desenhar um espaço que se alinhe da corrente desconstrutivista, mas impressiona muito mais ainda a profunda compreensão que a arquitecta, numa fase ainda tão ''inicial'', já demonstra das características e da execução de um projecto desconstrutivista. Vemos que a intenção de Hadid é, mais do que criar espaços, delimitar espaços já existentes. Num edifício de dois pisos que se articula com o edifício de uma fábrica, Hadid ergue uma série de planos verticais e horizontais, que rejeitam a ideia de uma massa construída, e parecem reinventar de certa forma a ideia de um castelo de cartas, irregular e agudo. A ideia da arquitecta para este edifício foi marcar no espaço a sensação de alerta permanente que caracteriza uma corporação de bombeiros.

 
Olhar para as plantas do edifício é já suficiente para percebermos como dificilmente essa sensação poderia ter sido transposta para o espaço de forma mais eficaz. As relações entre os planos formam compridos labirintos, que ora alargam ora estreitam, parecem sufocar o utilizador no interior, empurrando-o para o exterior. A poética da concepção espacial é assinalável e comprova, uma vez mais, a extrema sensibilidade para o desenho. Mas o desenho é, a um tempo, a maior força e a maior fragilidade da Vitra Fire Station. Todo o espaço é sacrificado à poética que se tenta marcar. Esse espaço labiríntico, angustiante e sufocante não é compatível com a necessidade de um quartel de bombeiros, que precisa de ser claro, nítido, simples e pragmático. O desenho tem uma presença excessiva no edifício, limita-o e torna-o pouco eficaz. Não parece prático encaminhar um grupo de bombeiros para uma ambulância por aqueles corredores, a circulação recria a sensação de alerta precisamente quando devia aliviar essa sensação. Perante um alerta, uma corporação de bombeiros precisa de ser eficiente e rápida, mas o edifício parece exactamente dificultá-lo. E aí começa a falhar.
 

O domínio da perspectiva, da plasticidade, da articulação de múltiplos eixos e da própria materialidade revela um entendimento muito profundo com os princípios do desconstrutivismo. É sabido que Zaha Hadid estudou a obra do pintor russo Kazemir Malevich e a interpretação de muitas das composições suprematistas transparece na Vitra Fire Station. Tal como nas pinturas de Malevich, as formas são maneiras de materializar o movimento, convocam uma espécie de realidade suprema (de onde vem o nome da corrente) e o mesmo acontece neste edifício. Mas o sacrifício da eficácia espacial é, neste caso, completamente imperdoável, principalmente tendo em conta que a mesma poética poderia ter sido criada no quartel de outras formas que, ainda que não se tornassem tão fortes bastiões desconstrutivistas, teriam resultado num edifício mais adequado. Esse é o problema da Vitra Fire Station: um problema de desadequação. Toda a sensibilidade, a elegância e a impressionabilidade do edifício teriam resultado muito bem num trabalho que não tivesse o intuito de ser utilizado, mas não é o que acontece aqui.
Há uma vertente experimental muitíssimo intensa em qualquer obra desconstrutivista, e essa vertente é também o seu maior desafio: onde é que o experimentalismo cabe e não cabe quando se trata de um edifício propriamente dito, de uma construção que será utilizada?

5.
Em 2003, Hadid viu concluído o seu projecto para o Rosenthal Center for Contemporary Arts, em Ohio. Trata-se de um edifício cujo aspecto exterior, ainda que denotando a sua tendência desconstrutivista, o faz de uma forma mais controlada do que na maioria das suas obras construídas. Uma vez mais, a influência do suprematismo russo faz-se sentir. O desenho do edifício faz parecer que este se partiu, com peças aparentemente deslocadas, deslocação que, no interior,  se traduzirá numa série de planos inclinados em corte.


O desafio aqui é consideravelmente menor do que havia sido o do quartel de bombeiros em Weil am Rhein. Tratando-se de um centro de exposições de arte contemporânea, não será de todo descabido que o próprio edifício constitua, por si só, uma obra para ser admirada. Nesse sentido, uma série de questões que se colocariam noutro tipo de exigências programáticas não têm aqui a mesma intensidade. A arquitectura tem uma valência artística, que muitos arquitectos aliás fazem questão de ignorar, e não deixa de ser até certo ponto provocatório que a arquitectura recuse a sua passividade ao projectar uma galeria como um simples contentor de arte, e seja ela mesma uma obra em exposição.
O exterior, utilizando quase sempre volumes ortogonais ou quase ortogonais, difere da maioria daquilo que conhecemos do trabalho de Zaha Hadid. É como se, aqui, o volume não fosse o principal elemento a sofrer desconstruções. São as relações entre os vários volumes que causam aquela sensação desconcertante de que o edifício se está a cindir. O poder estético do Rosenthal Center é, por isso, extraordinário. Todo ele é uma tensão entre corpos, uma vez mais o poder do desenho é um dos pontos de vantagem do projecto. E, uma vez mais, é a nível do espaço interior que o Rosenthal Center volta a demonstrar as suas fragilidades.
A tensão é intensamente procurada na concepção espacial dos edifícios. Hadid projecta uma série de rampas, escadas e corredores que se articulam entre si e criam uma espécie de passadeira que atravessa todo o edifício, não piso a piso, de uma ponta a outra, mas de piso em piso, jogando com elevações, e criando um circuito diversificado que deixa clara a intenção de definir no museu um só percurso que pode articular uma série de percursos secundários. Sendo muito embora um dos trabalhos de Zaha Hadid em que a vocação desconstrutivista não origina uma completa falta de lógica espacial, a verdade é que os desencontros dos pisos, os desníveis, as fragmentações e até as próprias mutações do circuito principal se tornam, uma vez mais, excessivas no seu desenho, racionalizados ao ponto em que deixam de ter qualquer preocupação prática. Por um lado, são precisamente essas cisões que possibilitam a criação de circuitos secundários a partir do principal, a criação de núcleos que se isolem um a um, ainda que formem um todo na exposição. Mas todo o espaço parece exaustivo e íngreme, e é inevitável pensar que o mesmo efeito poderia ser conseguido sem o recurso a um espaço que se torna tão tortuoso. Stéphane Beel resolveu os mesmos problemas de uma forma muito mais fluída e pragmática no projecto do M Museum em Leuven (Bélgica).


Trata-se, é preciso dizê-lo, de um dos melhores projectos de Zaha Hadid. As suas características directamente desconstruivistas, utilizadas com a mestria do costume, têm aqui um sentido que não se verificará em todo o tipo de edifícios. O espaço de um museu de arte contemporânea admite este tipo de exercícios, o experimentalismo tem aqui toda a razão de ser, articula-se na perfeição com o objectivo do projecto. Independentemente das fragilidades que o espaço possa apresentar, e apresenta algumas, elas são fragilidades admitidas pelo próprio programa. No seu ensaio On Style, Susan Sontag argumenta que Art is not only about something, it is something. A work of art is a thing in the world, not just a text or commentary on the world [SONTAG: 2009, 21]. Sendo a teoria de Sontag passível de muita discussão e de muita discordância nos dias de hoje, esta passagem não deixa de ter sentido. Hadid assume no Rosenthal Center precisamente essa postura, de não ser apenas contentor ou possibilidade, de ser alguma coisa específica, de ser alguma coisa em si.

6.
Um dos projectos mais recentes do estúdio de Zaha Hadid é o Glasgow Riverside Museum of Transport, cuja construção foi concluída em 2011. Neste edifício, recupera-se um pouco do espírito representantivo que existia já na Vitra Fire Station, mas desta vez, essa vontade de representar algo proporciona uma arquitectura que não é menos que figurativa. Se o desconstrutivismo tem sido pródigo em assumir a vertente directamente escultórica da arquitectura, neste trabalho, Hadid parece levar às últimas consequências a ideia de que a arquitectura seja uma escultura habitável. O edifício imita uma onda, estilizada e geometrizada, que se revela sem subterfúgios na fachada. A utilização do vidro faz com que se fique com a impressão de que entrar no Glasgow Riverside é entrar dentro de uma onda, o que cria uma relação estreita e firme com o rio Clyde, em frente. Esse prolongamento do elemento água para a terra é um dos aspectos mais marcantes de todo o projecto, e contextualiza-o também culturalmente, uma vez que cidade de Glasgow tem longa história na área da construção naval. A postura da arquitecta neste projecto condensa de certa forma as que encontrávamos nos dois exemplos acima usados. Por um lado, tal como na Vitra Fire Station, Hadid usa os potenciais da plasticidade para recriar uma sensação, por outro, tal como no Rosenthal Center, parece questionar a problemática do museu, daquilo que o museu pode ser, mais do que aquilo que o museu deve ser ou costuma ser.

Uma vez mais, o museu apresenta-se como peça artística propriamente dita, como parte da exposição e não apenas contentor dela. Muito embora se trate de um museu de transportes, o que remove as possibilidades abertas pela exposição de arte contemporânea, a verdade é que o edifício não deixa de ter sentido. Isto porque uma simples observação do edifício deixa muito clara a noção de movimento: é um movimento árduo mas fluido, que propõe uma sequência não linear mas forte. Uma vez mais, é a qualidade do desenho que triunfa. Não deixa de existir, também, o sacrifício do espaço que encontramos em quase todas as obras de Hadid. É certo que este edifício é o que apresenta um sacrifício menos acentuado. Levanta várias questões, mas não é necessariamente mau. Se por um lado os espaços expositivos são muito amplos, por outro poderemos argumentar que são excessivamente amplos, ao ponto de perderem qualquer noção de escala. Se o percurso plasticamente se encontra muito bem resolvido, podemos também apontar-lhe a habitual falta de pragmatismo: a tendência para impressionar dá origem a um percurso ziguezagueante que talvez não seja o mais eficaz. E se a estruturação e a plasticidade do edifício se enquadram perfeitamente com o contexto cultural do museu, é também certo que a sua relação com o restante edificado da zona é muito mais deficiente do que a sua relação com a frente aquática.


O Glasgow Riverside será não só o melhor dos três exemplos apresentados neste texto, como será um dos melhores projectos construídos de Zaha Hadid. O que o torna bom é não tanto aquilo que ele é enquanto edifício, como aquilo que ele é poeticamente, artisticamente e ideologicamente. Isto porque para as fragilidades que o espaço apresenta, é fácil encontrar justificações convincentes. O descontrolo da escala pode aludir à vastidão do mundo que está em volta de um transporte quando este se encontra em movimento. O ziguezague dos espaços expositivos pode representar a não-linearidade da maioria dos percursos. A própria desproporção do edifício em relação aos restantes pode ser uma forma de chamar a atenção sobre um lugar que pretende exactamente destacar-se, fazer-se notar não só enquanto edifício público, como enquanto espaço de exposição de uma parte muito importante da história da cidade. E se é verdade que podemos dizer que estas justificações são óbvias, é igualmente verdade que elas também são claras e compreensíveis. O Glasgow Riverside não precisa de largas teorias para se fazer valer. É dos raros edifícios de Zaha Hadid que consegue falar por si mesmo, e apresentar-se com toda a clareza naquilo que é no mundo, como naquilo que comenta sobre o mundo, para retomar a perspectiva sontaguiana.

7.
É certo que o desconstrutivismo, permitindo uma maior liberdade formal, uma ênfase muitíssimo maior na experiência estética, alude directamente à noção menos limitativa de arte. A interferência de exigências programáticas e de necessidades pragmáticas podem tornar-se, à primeira vista, castradoras para o apelo criativo meramente egoísta e até caprichoso do arquitecto enquanto artista. Mas, por outro lado, são precisamente essas contingências que também conferem à arquitectura a sua especificidade artística, da mesma forma que a tridimensionalidade distinguia a escultura da pintura, por exemplo. Num ensaio sobre Hadid, Luis Rojo de Castro resume da seguinte forma a definição de Nakov do desconstrutivismo: La dislocación de la estructura y la fragmentación de las partes que la componen ponen de manifesto el desplazamiento hacia una liberdad total de la forma, cuyo unico sistema conductor es el proceso de su ensamblaje [CASTRO: 1995, 23]. O desconstrutivismo parece, à partida, recuperar a posição livre e criativa do arquitecto. Mas onde a experiência estética e formal começa a ser possível, não deixa de existir a exigência de uma utilização. O problema essencial é de responsabilidade, a de que o arquitecto não esqueça que não deixa de ser arquitecto por sê-lo de uma forma mais desprendida.
A ciência consiste não só em compreender mas em fazê-lo de tal modo que nela ninguém deve errar, nem hesitar sob pressão de objecções [AGOSTINHO: 1957, 67]. Por esta definição, certamente adequada, de Agostinho de Hipona, podemos imediatamente depreender que a arquitectura não é uma ciência. A impossibilidade de se atingir uma compreensão infalível e indiscutível precisamente deixa a arquitectura longe da inflexibilidade da ciência, que só o é se for exacta. Portanto, o valor de qualquer proposta tem sempre, no mínimo, a possibilidade de nos abrir uma série de dúvidas relativamente às concepções artísticas e espaciais da arquitectura. O desconstrutivismo, levado à fama nos dias de hoje por Gherry, Koolhaas e Hadid, levanta de forma extrema o problema da estética, do estilo, da imagem. Recusando as volumetrias e linhas puras, a ortogonalidade, o minimal, a contenção, a discrição, a camuflagem, o desconstrutivismo regressa às artes do espectáculo iniciadas pela crise do Cristinanismo quando surge o Barroco. É de novo a vontade de impressionar, de seduzir, que dita as regras. A estética sobrepõe-se ao valor espacial, o programa é contaminado pela forma, e não o oposto.

8.
(...) las figuras actuales como Jean Nouvel, Norman Foster, Richard Rogers, Santiago Calatrava, Rem Koolhaas, Herzog & De Meuron, Zaha Hadid o Toyo Ito están lejos de la universidad, trbajam según una lógica empresarial, con su marca de empresa, sus grandes estudios en diversas sedes y su necesaria dependencia de los encargos de las grandes corporaciones y de los favores de los medios de comunicación [MONTANER, MUXI: 2012,53]. No momento em que estamos, já longínquo do primeiro arquitecto superstar que verdadeiramente podemos entender como tal, Le Corbusier, vemos que quase podemos contar com uma destas megaestrelas arquitectónicas por país, se somarmos ainda uma série de outros que, tendo um método de trabalho ou uma estruturação empresarial diferente da explicada por Montaner e Muxi, não deixam de obter resultados semelhantes: fale-se de Álvaro Siza Vieira em Portugal, por exemplo, ou de Oscar Niemeyer no Brasil. São particularmente frequentes em países de economias ou megalómanas, como a França, a Suíça ou o Japão, ou então economias mais frágeis como Portugal, Espanha ou o próprio Brasil. Infrequentes são em países de economias sustentáveis mas discretas, pois ainda que tenhamos Foster e Zaha Hadid no Reino Unido e Koolhaas na Holanda, veremos que não temos nenhum na Bélgica, na Polónia, em Itália ou na Áustria. Um exemplo estranho é a Alemanha, onde não temos propriamente um superstar, ainda que se trate de uma das grandes economias megalómanas quer da Europa, quer do mundo. O superstar parece ser mais necessário a países que pretendem ostentar a sua riqueza e a sua superioridade, caso da França, do Japão e da Suíça; ou então a países que pretendem combater a sua crescente pobreza com a tentativa de criar marcos e atractivos que lhes aguentem parte de uma escalada de volta à estabilidade, e esse será o caso ibérico ou o caso brasileiro no recente e descontrolado crescimento económico; e ainda o caso dos Emirados Árabes Unidos, particularmente no Dubai que, mesmo não tendo produzido propriamente um superstar, não deixa de se ter tornado uma espécie de grande centro da construção desvairada, que pretende mostrar ao mundo a chegada à riqueza. Isto nos mostra o quanto o superstar e a sua lógica dependem directamente do Poder, particularmente do Poder económico: quer seja para o ostentar, quer seja para o ajudar a crescer ou a recuperar. O arquitecto deixa de ser artista, torna-se mais um grande empresário que vai juntar-se ao governo no sentido de alimentar um sistema económico.
É por esta razão que a existência de arquitectos superstar atrofia a evolução do pensamento e da cultura arquitectónica. E é pena que alguém com as capacidades de Zaha Hadid se renda a este tipo de sistema, o que contribui substancialmente para a cada vez maior frigidez crítica e autocrítica por parte do atlier que encabeça.

22.8.13 - 8.9.13

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*AGOSTINHO, Santo. Contra os Académicos. Tradução e prefácio de Vieira de Almeida. Coimbra, Atlântida, 1957.
*CASTRO, Luis Rojo. Formas de Indeterminación. El Croquis nº 73 (I). Phillip Galgiani Publishing, 1995.
*MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitectura y Política. Barcelona, Gustavo Gili, 2012.
*SONTAG, Susan. Against Interpretation and Other Essays. Londres, Penguin Books, 2009.

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